“Minha terra não é moça, minha terra é menino, que atira badogue,
que mata mocó, que arma arapuca e sabe aboiar.” (Eurico Alves Boaventura)
“A carreta de Oscar grande como a
rua, Cine Íris e a certeza de ter nascido antes.” (Iderval Miranda)
“Você pode, em Feira, recitar versos logo de manhã e não parecer pedante. Você diz: parem de jogar cadáveres na minha porta." (Ederval Fernandes)
Costumo dizer que sou feirense de
umbigo enterrado, expressão popular baseada na tradição de enterrar o umbigo da
criança no local onde nasce, simbolizando sua pertença eterna com aquele pedaço
de chão. O meu foi enterrado no bairro da Mangabeira (ainda zona rural naquele
março de 1975) onde morávamos em uma chácara, misto de casa e comércio de meu
pai. Nasci nessa casa de parto normal pelas mãos da parteira Mãe Maria e da
enfermeira Maria Augusta e meu umbigo foi enterrado no curral onde é hoje é um
condomínio. Aos dez anos fui morar na Rua Edelvira de Oliveira, uma rua muito
movimentada entre a Av. Maria Quitéria e João Durval e ali fiquei até me casar
em 2005 e vir morar no SIM, bem antes do que o bairro ser o que é hoje.
Nascida e criada nessa terra me
sinto uma tabaroa de Feira com todo orgulho e gosto de reafirmar essa filiação
por outras terras por onde vou, sempre com a passagem de volta marcada. Como
boa feirense, tenho o hábito/costume ou até vício de “bater perna na rua”, como
os franceses dizem, sou uma flaneur. Para quem não é baiano, ir à rua significa
ir ao centro da cidade, parte viva e pulsante de toda urbe. O motivo pouco
importa, desde a compra prosaica de um presente até a resolução de um problema
burocrático, o prazer é andar pelo centro vendo as novidades, parando em
carrinhos de frutas, comendo amendoim ou milho assado, apreciando o corre-corre
das pessoas, ouvindo retalhos de conversa e imaginando suas histórias de vida,
escolhendo bugigangas que à primeira vista parecem essenciais.
Gosto disso desde criança. Pela
mão de minha mãe, íamos comprar tecido na Violeta, aviamentos no Armarinho
Marta, pão na Padaria da Fé, café e fubá no Tabajara, bijuterias em Zé do
Fusca. Recordo do encantamento quando entrei pela primeira vez nas Lojas
Brasileiras, meu primeiro Shopping, com aquele mundo de doces a granel, ou o
frio na barriga ao subir as escadas rolantes das Pernambucanas. Quando era
necessário íamos sacar algum dinheiro na ASPEB, da poupança que minha mãe fazia com
os seus caixas e trocos de feira, e íamos comprar roupas na Sheila ou sapatos
na Bezerra e Santana sempre no Natal ou São João, essa última muito chic, fazia
sorteios de pipocar a bola, uma vez ganhei uma Sandália Karatê. Quando
não tínhamos a carona de meu pai, íamos no ônibus da Autossel. O ápice desses
bordejos era merendar um coco espumante no Predileto ou o coroamento de um
almoço no Boiadeiro. E essa redondeza era toda beleza, havia ali no início da
Sales Barbosa um pipoqueiro e um freezer da Kibon, além de um jardim com bancos
para tomar nosso sorvete confortavelmente.
Eu estudei no primário no Colégio
Dalle Nogare, do hoje meu amigo e colega de UEFS Humberto Oliveira, que
funcionava em um sobrado em frente à Praça do Nordestino, bem no burburinho do
centro, então comecei a dar minhas escapulidas para ver a rua bem criança,
descobri ali pertinho uma banca de revistas, Sadel, nome em razão de funcionar
no passeio dessa loja, ainda hoje de pé, e uma loja de discos, a Só
Discos, volta e meia eu corria lá rapidinho na hora da saída. Ainda lembro-me
de uns móveis de bonecas, miniaturas de uma mobília, que eram vendidos na
esquina da Marechal com a praça da Bandeira, no passeio onde funcionava o Banco
Bamerindus (O tempo passa, o tempo voa), tão lindas que ainda guardo nas
gavetas da memória o cheiro de madeira daquela minha primeira casinha.
Já adolescente, de “cangote
grosso e ferrado limpo” como dizia minha vó Lili, comecei a ir para rua sozinha
e não parei mais. Eu me transformei em uma espécie de “quebra-faca” da família,
tudo que era preciso fazer na rua, “manda Alana que ela gosta”, “manda Alana
que ela sabe achar”, cargo que ainda ocupo na medida do possível da vida
adulta. Recordo-me da alegria de minhas compras do material escolar na
Nossa Papelaria ou na Livraria Dom Pedro, do simpaticíssimo Sr. Amadeu do Banco
do Brasil, que recebia pessoalmente seus clientes, levava na porta e chamava o
táxi se fosse preciso. A Ottan Center e CF Carvalho Magazine era tão
lindas, lojas de departamentos by Princesa do Sertão, com suas sessões
diversificadas e vendedoras muito elegantes. E havia o Íris e o Timbira onde
aprendi a amar o cinema nas matinês com gosto de Mentex e bala Kids. Depois descobri
a Galeria Carmac que tinha uma lanchonete maravilhosa na esquina e quando veio
a Luciana Center, o Arnold Silva e o Pedro Falcão foi a glória, até hoje quando
passo por eles não resisto a cruzá-los, o máximo em matéria de cortar caminho
vendo vitrine bonita no percurso. O Pedro virou Drogasil, nesse processo
bizarro de farmacificação de nossa terra.
Dessa fase, final dos anos 80
comecinho dos 90, também guardo boas lembranças dos domingos. Eu e minha turma
do Colégio Nobre com nosso cabelos de Chitãozinho e Chororó e calças bag, de
tardinha íamos para a Gelateria Italiana, ali ao lado do Colégio São Francisco,
hoje Safra. O legal era tomar sorvete e depois ficar na porta resenhando e
paquerando, às vezes atravessávamos a rua para um sanduíche no Gauchão que ficava
ali no meio ou para comer uma fatia de pizza na lanchonete do Malibu Shopping,
hoje Shopping das Fábricas. Enfim, o verbo dos domingos era “Getuliar” e quando
era perto da Micareta então, rolava por ali o que se chamava de Grito de
Micareta e na Micareta mesmo existia a rivalidade dos bailes Tênis x Cajueiro,
um mais popular, um mais elitizado. E em setembro era a Expofeira que agitava
nossa cidade, botar bota e muita banca de fazendeiro sem nunca ter sido e ir
para o Parque de Exposição era o máximo, quem não lembra do locutor de voz
empostada: Fazendas Bahia, Fazendas Pau da Rola…
A menina cresceu, ficou sabendo
que passou no vestibular para Letras pela Rádio Antares e pelo jornal Feira
Hoje, virou professora, virou esposa de um comerciante, filho de árabes que por
aqui chegaram e ficaram como muitos outros imigrantes que nossa terra acolhe,
virou mãe de Miguel, mas ainda guarda essa menina que um dia se perdeu no
centro da cidade e foi localizada numa barraquinha de doces na porta da Violeta
batendo altos papos com os fregueses e não entendeu o desespero de seu pai e um
monte de gente que a procurava, ela só estava dando umas voltas…
Praticamente de tudo que falei
aqui pouca coisa resta de concreto nessa Feira de hoje, mas ainda quando vou
para rua (um dos meus piores martírios do isolamento social, há quase seis
meses sem uma incursão na Sales Barbosa) essas memórias me invadem junto com
aquele cheiro de coco queimado com rapadura que era vendido ali na Bernardino
Bahia ou do gosto do sorvete da Princesinha, das seriguelas da Festa da
Kalilândia e da maçã do amor da Festa da Matriz onde passei muito mal um dia
por medo de Monga. Dentro de uma cidade cabem muitas cidades e dentro de
nossas memórias cabem muitos mundos, não vejo a hora de ouvir de novo Chip Tim,
Oi, Claro, Vivo, Cartão, Senhora?, Dentista?, Empréstimo?, Capinha, película?
Olha a “Acelora”… Essa é a minha Feira e sei que cada um tem a sua…Eurico
Alves, Godofredo Filho, Joaquim Gouveia, Hugo Navarro, Iderval Miranda, Ederval
Fernandes, Beto Pitombo, Carlos Pita, Zé Coió, Raymundo Luiz, Adilson Simas, Zé
Maria, Antônio de Josino, Clovis Ramaiana, Augusto Spínola, Jânio Rego, Cintia
Portugal, e você de umbigo enterrado ou não…
Texto de: Alana Freitas El Fahl é
Professora Titular de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana e
tabaroa de Feira de Santana com umbigo enterrado com muito orgulho!
Fotos: Grupo Memórias e Histórias de Feira de Santana
Fonte: http://tabuleirodamaria.blogspot.com/
Produtora:
Quem sou eu
Madalena de Jesus é jornalista,
radialista, professora de Língua e Literatura francesas, mãe de Hana Bárbara e
avó de Lucas e Bruna. Há mais de quatro décadas atuando na área de comunicação,
já passou por vários órgãos em Feira de Santana e outras cidades da Bahia. Foi
diretora de Jornalismo e titular da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de
Feira de Santana (Ba). Atualmente divide o tempo entre as Assessorias de
Comunicação da Câmara Municipal e do Centro Universitário UniFTC de Feira de
Santana. É também colaboradora do site Bahia na Política.
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